A situação de insegurança e violência experimentada no Rio de Janeiro possui, sem dúvida alguma, um conjunto de variadas raízes. Das nossas origens escravocratas, passando pela formação violenta das favelas e periferias e chegando a uma alta e permanente concentração de renda, podemos entender aspectos fundamentais do nosso drama. Contudo, as cenas de terror observadas recentemente a partir de comportamentos bárbaros, nos impõe a necessidade de analisar as circunstâncias da violência mobilizando outras lentes. Nesse sentido, o conceito recente de “Guerra Neocortical”, nos favorece na construção de alguns diagnósticos que pretendo aqui abordar à luz da recente polêmica gerada pela proposição da “Lei anti-Oruam”, por uma vereadora de São Paulo e que prevê a proibição do patrocínio com recursos públicos de eventos com músicas que façam apologia às drogas, violência, crime ou sexualização.
Em primeiro lugar, precisamos entender a polêmica causada em decorrência da Lei anti-Oruam. Particularmente, entendo que essa legislação não passa de campanha com fins essencialmente eleitoreiros. A própria mídia gerada em torno da proposta de Lei, gerará invariavelmente, o fortalecimento e a promoção do MC Oruam e daqueles que fazem composições tão deletérias. Esse tipo de movimento político apenas fortalece a polarização quando não é acompanhado do debate profundo que merece. Entretanto, a bola levantada através desse movimento, possibilitou um necessário e urgente debate: a imposição de músicas (no geral, não só o funk) e conteúdos de violência, crime, objetificação dos corpos e sexualização exacerbada a toda uma juventude, principalmente das periferias.
No livro “The Anthropology of Music”, de 1964, o antropólogo e etnomusicólogo americano, Alan P. Merriam, apresenta 10 (dez) funções da música em uma sociedade, sendo uma dessas funções, que ele define como “Função de reação física” aquela que mais nos chama atenção em acordo com a temática em tela. Merriam esclarece que, a partir dessa função, a música é capaz de gerar respostas físicas, como excitação, empolgação, encorajamento de determinado grupamento social frente a circunstâncias específicas, além de comportamentos momentâneos que podem exacerbar limites socialmente estabelecidos. É claro que não podemos ser reducionistas e cabe o entendimento de que as respostas físicas são sempre mediadas e moduladas pela cultura. Contudo, como veremos, a própria cultura de determinado grupamento está sujeita a constantes transformações em virtude das relações sociais e, principalmente nos dias de hoje, à influência direta das redes sociais na formulação de comportamentos.
Após compreendermos os efeitos científicos da música no comportamento, precisamos compreender um novo tipo de conflito muito bem elaborado e já teorizado, denominado ainda nos anos 90 por Richard Szafranski, Coronel da Força Aérea dos Estados Unidos, de “Guerra Neocortical”, em seu livro “Neocortical Warfare? The Acme of Skill”, publicado em 1994. A Guerra Neocortical é o conceito aplicado a um formato de conflito mais profundo que dispensa armas de fogo, veículos blindados ou aeronaves. Nesse tipo de conflito, o campo de batalha deixa de ser o território urbano ou as fronteiras de determinado país, passando a ser, definitivamente, a mente dos cidadãos do Estado-Alvo ou de determinada sociedade. O termo “Neocortical” advém de Neocórtex, que é a parte do córtex cerebral associada a funções cognitivas como a linguagem, a tomada de decisão e o pensamento abstrato. Tendo o córtex cerebral como alvo, esse tipo de guerra objetiva justamente afetar, influenciar ou direcionar a forma como os indivíduos observam a realidade e interpretam os estímulos ao seu redor, levando-os a tomarem decisões e ações que, em última instância, beneficiarão o agressor oculto (que pode ser um Estado, um grupo político ou determinada organização interessada na desestabilização de um alvo).
E como se desenrolam esses ataques ao córtex cerebral? Podemos depreender que as formas são variadas, mas hoje, com a massificação do uso das redes sociais, identificamos que é por aí que se constituem os principais ataques, advindos do fomento à difusão de informações falsas, disseminação de conteúdos alienantes e geradores de prazer ou satisfação imediata, e outras formas comunicacionais, que objetivam a manutenção da atenção a temas ou assuntos que criam, em última instância, confusão e tensões sociais.
O entendimento dos conceitos anteriores nos permite entender que, claramente, está em curso um intenso ataque à cultura e às formas de construção de hábitos sociais no Rio de Janeiro e no Brasil por meio da Guerra Neocortical, se utilizando, dentre variadas ferramentas, da música como mecanismo de disrupção cognitiva. Não é possível aceitarmos de forma passiva o argumento que afirma serem as letras ofensivas e violentas de certos funks, raps ou outros gêneros atuais, fruto de um processo natural de expressão de realidades. Como explicar que o funk, gênero que já expressou a denúncia de mazelas, tenha se transformado em forma violenta de fomento de conflito entre jovens, em sua maioria negros e pobres? Por que não vemos mais composições como o “Rap do Silva”, do MC Bob Rum, ou composições do MC Marcinho, que dedicavam-se a tratar de dores ou de entretenimento de toda uma população historicamente esquecida? Por que esse gênero foi criminosamente capturado e transformado em mecanismo de fomento à violência entre facções, o que culmina com a promoção da guerra entre indivíduos vulneráveis? A resposta não é simples, mas podemos encontrá-la se percebermos que, em última análise, a manutenção de um estado constante de conflito proporciona instabilidade continuada, retroalimentando o ciclo vicioso de subdesenvolvimento.
Para exemplificar a capacidade da cultura e da música enquanto instrumentos de determinação de valores, mesmo diante da barbárie, podemos observar o documentário produzido pelo cineasta israelense Shaul Schwarz, denominado "Narco Cultura". O documentário acompanha o policial Richi Soto em Juarez, cidade que registrava - à época - as maiores taxas de homicídios no mundo, e Edgar Quintero, cantor e compositor de um narcocorrido (nome dado a um estilo de música popular nas periferias mexicanas e entre os carteis de drogas). O documentário retrata como composições musicais exaltam assassinos, narcotraficantes e fazem a propaganda de um estilo de vida de ostentação baseado na violência e no crime como formas de expressão social, criando um verdadeiro ecossistema que pode ser chamado de “Narcocultura”.
Qualquer comparação ao Rio de Janeiro, não é mera coincidência. O que vemos nas favelas do Rio, com extensão às classes médias e até certas elites é, se não um reflexo perfeito de uma inversão total de valores voltadas a exaltação do crime como modo de vida? Meninos e meninas que só se comunicam através de gírias que emulam a violência, “MCs” que se tornam símbolos de status, lançam moda, cortes de cabelo, códigos de vestimenta e formas de comportamentos baseados na ostentação e na exacerbação do sexo e do crime como mecanismos de sociabilidade, são, acima de tudo, potentes armas de redução das capacidades cognitivas de um vasto grupo social. Como chegamos até aqui e como se dá essa operação de massificação da alienação e transmutação dos corpos em instrumentos de barbárie? Isso que tentamos responder, mesmo que em partes, por meio do entendimento do que se denomina por “Guerra Neocortical”.
Precisamos compreender que um dos principais campos de batalha na guerra moderna contra o crime no Rio de Janeiro e no Brasil, passa essencialmente pelo aspecto mental. O cérebro tornou-se o campo de batalha a ser dominado e nenhuma estratégia efetiva de combate ao crime será eficaz sem o correto entendimento por parte dos governos quanto ao que está posto do ponto de vista tático. A Guerra Híbrida moderna impõe uma percepção profunda da realidade e demandará adaptação e flexibilidade dos órgãos de poder para superação da barbárie. Libertar os quase 4 milhões de moradores do Rio de Janeiro dos cativeiros nos quais transformaram-se centenas de comunidades é fundamental e urgente, mas qualquer tática militar de ocupação ou desarmamento de criminosos não será realmente efetiva se não for acompanhada simultaneamente de medias radicais de intervenção psicológica, através da disputa de narrativas e consolidação de formatos comunicacionais eficientes que demonstrem a perversidade da “narcocultura” que tem se estabelecido nos territórios. É preciso disputar cada jovem com a narcocultura, impedir que fiquem em becos e vielas expostos ao recrutamento dos grupos de terror é imperativo, assim como o enfrentamento por meios comunicacionais das narrativas de exaltação do crime como modo de vida.
No início de fevereiro, os noticiários do Rio de Janeiro propagaram um vídeo onde policiais militares apareciam pedindo para tirar fotografia com o MC Oruam, filho de um dos maiores facínoras do Brasil, responsável direto pelo assassinato de centenas de policiais. Se não bastasse isso, o próprio MC, objeto do assédio vergonhoso, é autor de letras que desqualificam a polícia e propagam o terror contra agentes públicos. Ora, o que fez com que esses policiais esquecessem o dano causado por esse MC e pela facção que o mesmo representa? Vemos aí um dos efeitos da Guerra Neocortical na produção de disfunção cognitiva sobre os policiais que, em primeira mão, passam a valorizar mais uma foto com uma “subcelebridade” ao invés de honrar a memória dos seus companheiros caídos. Frente à guerra neocortical, o ensino das academias militares se torna frágil e anacrônico e não consegue produzir efeito na imunização dos agentes representantes da lei, que acabam por comungar dos mesmos valores e desejos daqueles que em tese deveriam combater.
Intelectuais, acadêmicos, órgãos de mídia, agentes políticos, fundações internacionais, organizações não governamentais e toda sorte de agências que lastreiam narrativas de suporte à cultura da ostentação, violência e do crime, estão financiando, cada uma à sua medida, o contínuo genocídio de toda uma população pobre e vulnerável. Chega a ser inusitado que esses atores utilizem esse mesmo argumento, do genocídio da população pobre, para fragilizar ou desestabilizar ações do Estado. Entretanto, é justamente o suporte à “narcocultura”, um dos principais fatores geradores de tanto derramamento de sangue.
Para finalizar, preciso deixar absolutamente claro que, diferente de outros autores que abordam a Guerra Híbrida e suas ferramentas táticas (como a Guerra Neocortical), não nego, em hipótese alguma, nosso processo histórico de pobreza, nossas raízes escravocratas, o racismo que se manifesta em nossa sociedade, a ineficiência do Estado na efetiva distribuição de renda ou na promoção da uma educação de qualidade para os nossos jovens. Do contrário, observo com grande nitidez que nossa construção histórica de sociedade baseada na violência e em profundas desigualdades, lançou as bases para o profundo processo de dominação ao qual estamos submetidos. É importante deixar evidente esse ponto aqui, para que não se confundam ou tentem desqualificar os argumentos apresentados sob o pretexto de que tento justificar a violência e a barbárie tão somente pelo aspecto de um conceito recente de dominação de contingentes populacionais. Muito pelo contrário. É evidente, à luz da literatura clássica das Ciências Sociais, que estejamos justamente diante de apenas mais uma ferramenta destinada à dominação, que só se mostrou tão eficiente sobre nossa população justamente por conta de nossas debilidades históricas.